Entrevistas

Insatisfeito, inconveniente e sem-partido

Publicado em 27 de agosto de 2006 no Caderno Alias, do O Estado de Sao Paulo.

Para Diegues, que cunhou o termo "patrulha ideológica", assim deveria ser o artista brasileiro, esse personagem que a ditadura transformou em grande pensador

Cacá Diegues não apareceu para o jantar. Está de filme novo, O Maior Amor do Mundo, e tinha pré-estréia bem na noite do convescote. O jejum, no entanto, tem menos a ver com agenda e muito mais com saco - no caso, a falta dele. Cacá Diegues está desanimado com a política, e o encontro da última segunda-feira, na casa de Gilberto Gil, no Rio de Janeiro, era uma celebração em torno do candidato Lula. Chico Buarque também não constou, mas este já tinha declarado voto no presidente. E, como estiveram lá a Alcione, a Lecy Brandão e o Zeca Pagodinho, não será por falta de samba que Luiz Inácio irá dançar. Caetano Veloso foi outro que não foi. Segundo Gil, "não é Lula há muito tempo". "Não é uma questão racional", caetaneou o ministro. "É uma questão de afeto."

No rega-bofe do presidente, o pessoal racional estava com a corda toda. O compositor Wagner Tiso disse não estar preocupado com a ética, e que "o PT fez o jogo que tem que fazer para governar". Paulo Betti, o ator, declarou ser a política alguma coisa que não se faz "sem botar a mão na m.", dando a entender que uma chafurdadazinha de vez em quando não tem problema. Seu colega José de Abreu propôs um brinde a José Dirceu. No final, Lula chorou abraçado a Wagner Tiso, enquanto o resto da semana nos reservou a repercussão das declarações. Até a "cientista política" Elke Maravilha foi consultada por um grande jornal.

Aos 66 anos, Cacá Diegues (Carlos Diegues) não quer entrar em polêmica com ninguém - não suporta a "patrulha ideológica", termo que ele mesmo inventou, em entrevista ao Estadão no final dos anos 70. Mas cobra da intelectualidade brasileira (curioso como no Brasil cantor popular e ator da Globo já são automaticamente intelectuais) uma posição apartidária, "insatisfeita e inconveniente". Sem saber em quem votar, vê-se obrigado a escolher entre "o social-elitismo e o social-populismo". Está desanimado com a política mas não com o povo brasileiro. Está animadíssimo com o seu novo filme, que entra em cartaz no 7 de Setembro. Entre uma pré-estréia e outra, concedeu a seguinte entrevista:

Você foi convidado para o jantar com o presidente Lula?
Sim, mas não fui. Estou fazendo a campanha de lançamento do meu novo filme e, nessa mesma noite, estava numa pré-estréia no Recife. Uma semana antes, tinha sido convidado para uma reunião com Geraldo Alckmin. Também não fui. Estou muito ocupado e, além disso, muito desanimado politicamente. Eu não sei em quem votar, não tenho realmente vontade de votar em nenhum dos candidatos que estão aí. Sou da geração que votou pelas Diretas, pelo fim da ditadura, pela democracia. Seria uma covardia votar em branco. Vou escolher um, nem que seja quando eu estiver em frente à urna.

É da turma do menos pior?
É um dever democrático escolher alguém. Votar em branco é trair o esforço que a gente fez para democratizar o País.

Você foi um eleitor do Lula?
Já votei no Lula em algumas eleições e em outras não. Eu tenho acompanhado pelos jornais o debate que se estabeleceu entre os artistas por causa do apoio a Lula. Sobre isso, quero dizer que não sou um intelectual orgânico. Não gosto da idéia do intelectual que pertence a um partido - e que reage aos acontecimentos políticos, culturais e sociais em função de uma disciplina de grupo. O papel do intelectual não é esse. O papel do intelectual é exatamente ter liberdade para se manifestar não organicamente. O fato de eu ter ou não votado no Lula não me faz escravo da disciplina desse candidato. No fundo, o homem público diz aquilo que os outros querem ouvir. O intelectual deve dizer aquilo que está com vontade de dizer.

Gilberto Gil disse que Caetano Veloso perdeu o afeto por Lula. O seu desânimo com a política é por perda de afeto ou por causa da corrupção mesmo?
Exatamente por eu não ser esse personagem que eu detesto, o intelectual orgânico, tenho toda liberdade para dizer quais os meus sentimentos em relação a isso. E eles são dúbios. É claro que a minha decepção com tudo o que aconteceu é muito grande. Eu achava que, pelo menos do ponto de vista da ética, o Brasil iria mudar radicalmente. Não mudou e isso é desapontador. Mas também não concordo com o velho preconceito que vejo nesse ódio social ao Lula. Isso existe e é muito grande. Tem uma elite brasileira que, a cada vez que sente um cheirinho de povo, fica em pânico. O meu pânico não é esse, não. O meu pânico é a minha decepção grave com o que aconteceu ao País em termos de honestidade. Ao mesmo tempo, o sentimento de cidadania cresce no Brasil. Há anos atrás, aconteciam essas mesmas sacanagens e ninguém sabia. Hoje, pessoas estão sendo punidas. Não por causa do governo. Mas por causa da sociedade, dos jornais. Não podemos considerar o crime uma coisa normal, e nisso temos de prestar muita atenção sempre. É um grande absurdo achar que tudo o que nos aconteceu é normal porque sempre aconteceu e portanto vai sempre acontecer.

Artistas como Wagner Tiso e Luiz Carlos Barreto, que declararam apoio a Lula, batem justamente na tecla de que o mensalão faz parte do jogo político, de que não há corrupção se o fim é nobre, de que não houve roubo...
Não tenho ânimo para polemizar com ninguém, muito menos com meus colegas artistas. Agora, não é porque o crime se repete que ele deixa de ser crime. Nenhuma boa intenção e nenhum fim glorioso justificam o crime. Crime é crime.

Por que causa tanto rebuliço o pronunciamento dos artistas sobre candidatos no Brasil?
A tradição do intelectual independente, o não orgânico, vem lá do final do século 19 e chega até Susan Sontag e todos esses intelectuais que participaram e participam da vida pública. Descobriu-se que o papel do intelectual no mundo moderno é ser sempre inconveniente.

Mas no Brasil eles não são exatamente intelectuais, mas atores e cantores populares...
Essa tradição do intelectual insatisfeito, que vai de Émile Zola a Susan Sontag, é uma tradição universal - o inconveniente que pensa com sua cabeça, por sua própria conta e risco, sem grupo ou partido. No Brasil, criou-se uma bela tradição durante a ditadura, quando não havia um classe política com liberdade para falar. Nesse período, o País passou a ser pensado pelos artistas. Como tinham palco e platéia, e estavam relativamente protegidos por seu público, alguns deles usaram bravamente sua fama para defender idéias de redemocratização. Chico Buarque e muitos outros fizeram isso com brilhantismo e foi muito certo naquele momento, porque a academia estava amordaçada, políticos não tinham liberdade, a imprensa estava censurada. Isso causou uma certa distorção: a partir de então, o Brasil passou a ser pensado pelos artistas. Não há nada de pejorativo nisso. Foi uma coisa positiva, que produziu grandes pensadores, como o próprio Chico, Glauber Rocha, Caetano...

O que aconteceu com esse processo depois da redemocratização? Quando a ditadura começou a acabar, eu dizia muito o seguinte: "Cuidado com a democracia, que é uma coisa difícil..." Porque, quando se está sob uma ditadura, as opiniões são necessariamente unânimes, já que estamos todos contra ela. Então há uma grande unidade, que coloca os opiniões pessoais em segundo plano, justamente para vencermos essa ditadura. Mas, com a democracia, cada um é obrigado a dizer o que pensa e a tomar o seu lado. É isso que começa a gerar as polêmicas.

E a patrulha ideológica.
Sim. Eu usei o termo como uma piada, até porque não sou cientista político para ficar inventando teorias. Mas era uma piada tão certa que pegou. Tentou-se reduzir a criatividade do artista a uma linha ideológica precisa. E toda vez que se escapa a ela, você é punido.

A importância da opinião do artista no Brasil fez com que o acadêmico ficasse em segundo plano?
Não. Os intelectuais estão escrevendo livros, estão falando... Ainda não se acostumaram com o fato de que o outro tem direito à sua opinião. A chave da democracia é aceitar a diferença e considerar que, talvez, o outro tenha razão. Não se pode confundir discordância com implicância. Na minha relação com o Ministério da Cultura, há 2 anos, discordei do projeto da Ancinav. Discordaria novamente se viesse de novo algo parecido com aquilo. E no entanto, agora, concordei o projeto de lei que o ministro Gil mandou para o Congresso. Não tenho compromisso com o contra nem com o a favor. Essa liberdade de opinião tem de ser o papel do intelectual - e penso que é assim que tem feito a academia. A gente só não pode desejar o desaparecimento daquele do qual a gente discorda.

A discussão das idéias não consegue reanimá-lo politicamente?
Todo o mundo no Brasil é social-democrata. Mas não quero ser obrigado a ter de escolher entre o social-elitismo e o social-populismo... O meu desânimo não é com os artistas, os escritores, os intelectuais, os pensadores. Estou desanimado é com a mesmice da política. Eu saio na rua e vejo uma miséria assombrosa. Não precisa ir na favela, apenas dar um pulo na rua. Aí chego em casa, ligo a televisão, leio o jornal, e oposição e governo estão dizendo que a economia vai muito bem. Gostaria de entender o que quer dizer isso... Agora, ao mesmo tempo, sinto que existe uma consciência crescente na população brasileira de que as coisas não podem ser mais assim. O que acontece é que o Brasil melhora - não por causa de seus governos, mas melhora.

Voltando à questão da patrulha ideológica. Por que Marília Pêra e Regina Duarte ficaram tão marcadas por terem dado apoio às campanhas de Collor e Serra, respectivamente, e artistas que apoiaram Lula não se queimaram nem diante das evidências de corrupção no governo?
Não sei se essa avaliação procede. As recentes declarações do Paulo Betti e do Wagner Tiso os deixaram muito mal na imprensa... De qualquer modo, analisando a questão de um ponto de vista não partidário, tranqüilo, não sectário, é possível dizer que Lula é o político brasileiro mais amado desde Getúlio Vargas. Não tenho nenhum explicação para isso, mas veja que o Fernando Henrique fez um grande governo... Quer dizer, gostaria que tivesse havido mais transformações do que houve, mas ele acertou em muitas coisas. É um político admirado - mas amado mesmo é o Lula. As pesquisas que dão a ele essa vitória clamorosa nas próximas eleições não têm outra explicação senão essa: ele é amado pelo povo. O que se vai fazer?...

A relação do artista com o político se dá mais no campo do afeto, como sugeriu Gilberto Gil com relação a Caetano e Lula, ou estão embutidos nisso os interesses em incentivos e patrocínios oficiais?
Isso é nossa velha paranóia de procurar chifre em cabeça de cavalo. Pode até haver interesses, mas não pode ser tomado como regra. É injusto e desonesto. Mais uma vez eu cito Chico Buarque, que jamais precisou do Estado para porra nenhuma na vida dele. No entanto apóia o Lula, gosta do Lula, diz que vai votar nele. Duvido que tenha algum interesse mercantil nisso. Claro que há aqueles que concordam ou não com a política cultural do Lula e por isso vão votar ou não no candidato. Mas a democracia também é isso: ela comporta os interesses corporativos e de classe. Como votam os empresários? Naquele que estará fazendo a política econômica que lhes dê mais lucros. Não penso que isso seja um interesse escuso. É o papel deles, da mesma forma que operários devem votar naqueles que lhes protegem a renda e o emprego. Agora, o fato de a Petrobrás apoiar o meu filme não me obriga necessariamente a ser governista.

Quando Chico Buarque declarou seu voto em Lula, isso foi transformado em um grande acontecimento. Agora, ele faltou à reunião de apoio à reeleição e mereceu até um comentário do presidente. Por que suas opiniões são tão importantes assim, se até ele próprio parece desconfortável com isso?
Ele tem toda a razão em sentir-se assim. Eu mesmo não entendo por que você me telefona para saber a minha opinião política. Não sou especialista nisso. Entendo a irritação do Chico, que é muito mais pressionado do que eu para dar a sua opinião - e deve sentir-se do mesmo jeito, já que também não é um especialista...

Mas no Brasil os artistas não são os nossos grandes pensadores?
O Chico é um dos maiores artistas brasileiros vivos. Aliás, um dos maiores artistas de todos os tempos. Como isso é uma coisa consagrada e unânime no País, ele fica sempre sendo pressionado para responder sobre tudo. Mas ele não é obrigado a ter opinião sobre tudo. Eu também não sou obrigado a ter opinião sobre tudo. Não tenho mandato, não prometi nada a eleitor nenhum. O político, sim, é obrigado a prestar contas ao eleitor...

Talvez você e o Chico se sintam assim porque estejam fazendo o papel que deveria ser, por exemplo, do cientista político...
Não me sinto obrigado a esse papel. Aliás, me sinto absolutamente à vontade para lhe dizer que não tenho o menor ânimo para falar de política. Prefiro discutir o avanço da cidadania, o papel que certas comunidades estão desenvolvendo no crescimento do Brasil, independentemente do Estado. Estou muito mais interessado nesses movimentos espontâneos ou organizados da sociedade. Isso nos dá a consciência de que podemos fazer muita coisa e de que o Estado não é tudo, pelo contrário. Há 3 ou 4 anos, eu estava muito animado. Achava que estávamos indo muito bem. Depois de termos um presidente como Fernando Henrique, ter outro como Lula - isso é uma sorte e, na época, disse isso nos jornais. Mas nem Fernando Henrique e nem Lula cumpriram os meus sonhos de Brasil. E não vejo no horizonte muita coisa que me entusiasme. Então tenho o direito de perder o ânimo. Mas tem uma coisa que eu faço questão que você escreva: isso não tem a menor importância. Porque não sou político nem cientista político. Sou apenas um cineasta fazendo filmes e dizendo o que penso do mundo. Talvez eu tenha alguma autoridade, pelos filmes que fiz e por meu papel intelectual nesse País. Agora, não me peça para assinar manifestos. Não assino. Porque isso era uma arma que nós criamos durante a ditadura para nos proteger mutuamente - como a opinião era crime, escrever um manifesto com muitas assinaturas era criar dificuldade para a repressão. Hoje em dia isso não existe mais. De Sarney a Lula, não houve nada que prejudicasse o avanço democrático. Assinar um manifesto, hoje, é uma maneira de diluir a minha opinião atrás de um muro de assinaturas. Cada um que se manifeste por sua própria conta e risco. Dê uma entrevista, escreva um artigo, faça uma carta para o jornal.

Vamos dar um tempo na política e falar um pouco sobre o seu novo filme...
Eu realmente não estou interessado em política...


Você define 'O Maior Amor do Mundo' como "um road movie pelas quebradas do Rio de Janeiro". Explique melhor do que se trata.
É a história de um homem que aos 55 anos descobre a verdadeira identidade de seus pais e o amor incrível que os uniu. Isso faz com que reveja toda a sua vida, através de uma viagem externa e interna. Assim, ele examina todos os sentimentos que evitou, achando que a razão era o único instrumento que tinha para conhecer o mundo. A viagem exterior mostra para ele o Rio de Janeiro, cidade onde nasceu mas que ele não conhece. É um road movie pelo Rio e pelo coração de um homem. Isso nos obrigou a filmar desde as praias elegantes da zona sul carioca, Ipanema e Leblon, até os confins mais miseráveis da Baixada Fluminense.

Esse personagem, interpretado pelo José Wilker, é um homem que está à beira da morte.
Sim. Na verdade, o filme é um pouco contra o fanatismo iluminista - essa idéia de que a razão vai resolver tudo e vai dar ao homem um caráter divino e um controle sobre a natureza, o mundo e si mesmo. Mas isso não vai acontecer nunca, porque no fundo somos bichos - e como bichos, imperfeitos. É preciso que a gente integre a imperfeição aos nossos projetos de humanidade. No filme, o José Wilker é um astrofísico bem-sucedido, que vive no exterior. Passou a vida toda olhando para as estrelas, tentando descobrir o mecanismo de controle do universo. E não viu a vida passar ao lado dele. Um dia, descobre que vai morrer, e que esse controle que tinha sobre ele mesmo se danou. É muito difícil resumir o que um filme quer dizer, porque quem o completa é o espectador, com sua interpretação. Mas acho que a chave está no momento em que ele vê que poderia ter sido outra pessoa.

Você trabalha com muitos atores saídos de grupos formados nas favelas e periferias do Rio. O seu encanto pela maneira com que essas pessoas têm se virado, sem nenhum apoio oficial, tem a ver com o seu desencanto com a política? Totalmente. Lido com essas pessoas e o que elas fazem é muito superior ao que os políticos fazem. Trabalho com o Nós do Morro, que é um grupo cultural do Morro do Vidigal, desde 1993. Na época, era um pequeno grupo de teatro com 12 ou 15 pessoas, que fizeram o meu filme Veja Esta Canção. Hoje tem mais de 600 membros, com raízes na Rocinha e vários outros lugares do Rio. Já estão fazendo seus próprios filmes, por enquanto curtas-metragens. Há vários outros grupos como este - a Central Única das Favelas, onde dou aulas no curso de audiovisual, o Cinemanero, o Nós do Cinema, o Observatório das Favelas. Eles agem sem esperar que alguém aja por eles. A próxima grande novidade do cinema brasileiro, pode escrever, é o surgimento de um cinema de periferia, feito por comunidades carentes.

Isso tem a ver com a evolução da tecnologia, não?
Sim. A tecnologia digital democratizou a produção cinematográfica, e esses meninos todos estão filmando. Seus curtas-metragens são originalíssimos, porque são testemunhos de própria voz. Eles são os porta-vozes de si mesmo, e isso faz muita diferença. Um desses curtas, de um cara chamado Luciano Vidigal, lá do Morro do Vidigal, ganhou o prêmio de melhor curta no Festival de Marseille este ano. Está acontecendo uma espécie de alfabetização audiovisual, assim como a Europa se alfabetizou, na aurora do Renascimento, graças à invenção da imprensa. A tecnologia digital corresponde, hoje, à invenção daquela imprensa. Voltando ao que estávamos falando: eu tenho um grande desânimo político. Mas nenhum desânimo social. Desse ponto de vista, eu acredito que o Brasil até pode dar certo.

Por Fred Melo Paiva