Cacá por Cacá

Os filmes de Carlos Diegues vistos por Carlos Diegues

Ganga Zumba - 1963

Acho que sou o único realizador do Cinema Novo a estrear com um filme que não é realista e nem um pouco documental; certamente o único a estrear com um filme histórico que, embora impregnado de atualidade política, é uma fábula com o gosto da fantasia e do espetáculo, duas coisas importantes no que faço desde então.

A Grande Cidade - 1965

Embora não seja autobiográfico, esse filme é um tributo à minha própria formação de alagoano vivendo no Rio de Janeiro, dividido entre sentimentos arcaicos e um grande desejo de modernidade; uma ponte voluntária entre a tradição rural dos primeiros filmes do Cinema Novo e a rápida urbanização do país; um de meus filmes que mais gosto...

Os Herdeiros - 1969

Essa é a minha descoberta da política como tragédia; um testemunho pessimista, um documentário dramatizado sobre a minha geração e, ao mesmo tempo, uma ópera política que reflete meus flertes com a música e sua transparência no mundo; um filme radical que foi muito mais amado e compreendido fora do que dentro do Brasil...

Quando o Carnaval Chegar - 1972

Uma ótima idéia prejudicada pela então contemporânea cultura de resistência e pela falta de um roteiro mais consistente; mas este filme tem as sementes do que acho ter feito de melhor depois dele; foi um privilégio e uma graça trabalhar com Nara, Chico e Betânea, registrar esses gênios em película, para sempre..

Joanna Francesa - 1973

Um turning-point, um momento de virada em direção a um cinema mais temporal, dramatúrgico, íntimo, elaborado em cima de sua própria encenação e não das idéias que a precedem; um tributo à literatura e à memória da decadência bárbara; infelizmente, não fez o sucesso que eu gostaria que tivesse feito, mas é um de meus filmes prediletos..

Xica da Silva - 1976

O meu maior sucesso popular no Brasil, onde florescem inteiras as idéias sobre um certo espetáculo cinematográfico que sempre procurei; Jeanne Moreau, ao vê-lo em Paris, me disse que era "um Lola Montès selvagem", o que eu gostei muito de ouvir, pois adoro Ophuls; neste filme, encontrei Zezé Motta, uma irmã querida desde então, uma princesa do Brasil..

Chuvas de Verăo - 1978

Eu estava montando Xica da Silva quando comecei a fazer psicanálise; Chuvas de Verão, dedicado a meus filhos Isabel e Francisco, é um fruto dela, o meu único filme totalmente escrito apenas por mim, sem nenhum parceiro; às vezes, me dá vontade de refazê-lo sob o meu ponto de vista de hoje, agora que estou chegando à idade de seus protagonistas...

Bye Bye Brasil - 1980

Um grande sucesso, de público e de crítica, dentro e fora do Brasil; tenho muito orgulho desse filme, acho que ele não envelhece nunca. "Bye Bye Brasil" veio num momento em que ainda mal se discutia a questão ecológica e o multiculturalismo; para uns, ele era um filme sobre um país que estava desaparecendo; e, para outros, sobre um país que estava começando a nascer; acho que os dois lados tinham razão"..

Quilombo - 1984

Eu ia fazer Orfeu da Conceição, mas Vinicius morreu, eu tive que mudar de projeto, meu amigo Jean Gabriel Albicocco me sugeriu este, uma velha idéia que eu acalentava desde Ganga Zumba; um filme histórico, que tentei fazer como se fosse ficção científica, uma fantasia de antecipação; um filme de época, um pouco fora de época, que fiz para Glauber, no céu...

Um trem para as estrelas - 1986

Eu queria fazer este filme em São Paulo, mas Renata ficou grávida de Flora e eu não quis me afastar dela; é uma espécie de Orfeu clandestino, na moita; usei nele algumas das idéias que andei discutindo com Vinicius, em 1980, e tem até a Valsa de Eurídice, cantada por Olivia Byington, na trilha sonora; eu devo um filme a São Paulo, um dia vou fazer...

Dias Melhores Virão - 1989

Uma comédia kitsch, sobre as pessoas que se transferem para a vida dos outros, em geral seus ídolos, em vez de viver as suas próprias vidas, numa espécie de dublagem cultural, mental, espiritual, um assunto atualíssimo; ao fazê-lo, pensava muito em Fellini, uma de minhas grandes admirações; se o filme não tivesse estreado na televisão, talvez tivesse feito muito sucesso nos cinemas, não sei...

Veja Esta Canção - 1993

Ninguém filmava no país, por causa do Collor, aí a gente inventou, com a ajuda da TV Cultura e do Banco Nacional, esse jeito de não ficar louco; eu quis experimentar o mesmo prazer do músico que grava um disco, em que cada faixa atende a uma de suas diferentes necessidades artísticas; um trabalho só com gente nova, tecnicamente diferente e estimulante, em que aprendi muito..

Tieta do Agreste - 1996

Esse projeto foi criado originalmente por Sonia, que me chamou para dirigi-lo; aceitei com prazer e fiz o filme com muito amor, em homenagem a três pessoas importantíssimas na minha vida - Jorge Amado, Caetano Veloso e Sonia Braga; só acho que o filme devia ter sido um pouco mais curto; ou então muito mais longo..

Orfeu - 1999

Levei quarenta anos para fazer esse filme, ele acabou sendo uma soma de muita coisa que pensei e fiz ao longo desse tempo; um dos meus filmes que, uma vez pronto, mais se aproxima do projeto original; o maior elogio a ele, e um dos maiores que já recebi em toda a minha vida, está numa entrevista de Nelson Pereira dos Santos, onde ele diz que, se fizesse Rio, 40 Graus hoje, o filme seria muito parecido com Orfeu...

Deus é Brasileiro - 2002

Levar para as telas uma história do João Ubaldo Ribeiro era um sonho antigo, pensei em mixar vários contos em um único filme, mas não achei um eixo, então, decidi por "O Santo que não Acreditava em Deus"; não é um filme sobre Deus ou religião, mas um questionamento do projeto de excelência do ser humano; foi uma das experiências mais prazerosas da minha carreira, pelo encontro com o elenco e as viagens pelo país.. .

O Maior Amor do Mundo - 2006

O processo desse filme foi muito rápido, apenas 18 meses entre o roteiro e as filmagens, o que fez todo sentido, porque essa é uma história sobre a importância de um instante, por mais breve que ele seja; o filme aponta para a possibilidade de um humanismo não-triunfalista, ao mostrar a trajetória de um homem que, no final da vida, reconhece que não pode controlar tudo e percebe que essa imperfeição.

Nenhum motivo explica a guerra - 2006

Quando você foge da violência, você é um homem normal. Quando responde à violência com mais violência, trata-se de um insensato. Mas se você reage à violência dedicando sua vida à paz, você é um herói. É isso o que os membros do Grupo Cultural AfroReggae são, mensageiros da paz nascidos da violência de que eles e os seus foram tantas vezes vítimas. Essa violência que é filha da injustiça e do desrespeito pelo outro, produzida por uma estrutura social que, além de excluir, ainda exige que os excluídos percam sua identidade, se comportem como se não existissem. As favelas brasileiras são o resultado dessa cultura da injustiça, praticada no país através de séculos – o Brasil é que é portanto o problema das favelas, e não o contrário. E a solução desse problema só pode vir de dentro delas mesmas. A esse drama, o AfroReggae responde com luminosa originalidade, através da bela frase que todos os seus membros repetem sempre: a cultura é o principal instrumento da mudança. Para mim é, além de um prazer, uma honra ter a oportunidade de trabalhar com os rapazes e moças do AfroReggae, esses heróis modernos de nossa cidade e, já hoje, de todo o país. Eles não só têm um decisivo papel político e social em relação às comunidades carentes do Rio de Janeiro, como também são artistas que fazem uma música de extraordinária qualidade, uma fusão de idéias novas na ponta do que Caetano Veloso chamou um dia de “linha evolutiva” da música popular brasileira. Grandes artistas e grandes seres humanos, como se pode ver no show e no filme que estão neste DVD, o AfroReggae me deu, na convivência com eles, a oportunidade de testemunhar uma nova hipótese de Brasil. Nascido no seio de uma inconcebível tragédia, filho de comunidades maltratadas e sofridas, o AfroReggae é a prova concreta de uma utopia possível para o país. Ele nos ensina que o Brasil pode ser muito melhor e que a vida vale à pena, se for vivida em paz, com amor e justiça...