Depoimentos

O Exílio do Barroco

Antes de qualquer coisa, quero informar que não tenho a pretensão de estar formulando nenhuma tese acadêmica. Esse texto está fundado apenas em observações de um militante do cinema brasileiro, há mais de 50 anos, que antes de ser um cineasta é sobretudo um cinéfilo. Essas observações visam mapear o que tem acontecido em nosso cinema nestas últimas décadas, e também pensar sobre o momento em que nos encontramos.


No início da segunda metade do século 20, logo após a Segunda Grande Guerra, já se faziam filmes em muitos países de todos os continentes, inclusive na América Latina. Mas poucas cinematografias nacionais eram exportadas, produziam filmes que circulavam pelo mundo inteiro com significativos consumo, reconhecimento e assimilação locais.
Com a expansão em larga escala do hábito social do cinema, com o surgimento de novas técnicas e modos-de-fazer que barateavam a produção, e sobretudo com o crescimento econômico ocorrido, neste período, em quase todo o mundo, a partir de meados dos anos 1950 começaram a surgir cinematografias nacionais em países menos desenvolvidos, que iriam se consolidar (ou não) nas décadas seguintes. A América Latina foi pioneira neste processo de fundação de cinematografias nacionais.
Quando os nossos mestres pioneiros começaram a realizar seus filmes, seu olhar ideológico e de cinéfilo estava naturalmente voltado para o neo-realismo italiano. Era na Itália que se inventava um cinema que estava ao alcance deles em termos de modo-de-fazer e que, ao mesmo tempo, inaugurava um espaço temático de questões humanas e sociais com o qual podiam se identificar.
O cinema fora inventado, cerca de 50 anos antes, como uma reprodução mecânica daquilo que nossos olhos podiam ver. Mostrar a saída de operários de uma fábrica ou a chegada de um trem à estação, causava encanto e espanto suficientes para justificar a existência da nova mídia.
A esse cinema de “mostração”, sucedeu um outro, de narração, quando os cineastas descobriram que aquele mecanismo servia também para que se contassem histórias. Servia para criar uma arte narrativa inédita, que não dependia de nenhuma outra anterior a ela. Mas esse processo de invenção de uma nova arte sofreu duro golpe, quando o extraordinário avanço tecnológico do som submeteu a autonomia do cinema a inesperada dependência do teatro e da literatura, do psicologismo e do folhetim.

Nascia assim uma nova arte popular de caráter universal, com um alcance que a cultura humana jamais conhecera antes.
Enquanto isso, alguns cineastas solitários, espalhados por diferentes países, ensaiavam uma transgressão, a partir da idéia de que o cinema, além de narrativo, podia ser também um meio de expressão individual. Um cinema que iria alcançar seu auge e sua glória nos anos 1960.
Para o neo-realismo italiano, o primeiro movimento a anunciar coletiva e formalmente o surgimento desse cinema de expressão, não se tratava apenas de fazer “filmes populares”, mas de fazê-los como porta-vozes das aspirações do povo. Não se tratava mais de apenas reproduzir os fatos do cotidiano ou juntar esses fatos para contar uma história; mas também de interpretá-los, através de imagens e sons, em função de mudanças que os homens tinham o dever de fazer nas sociedades em que viviam. Não se tratava apenas de fazer filmes sobre o estado do mundo, mas fazê-los a partir do estado de espírito de seus autores.

Na tradição da cultura modernista do século 20, não podia haver projeto mais libertário do que esse – a construção, a partir do direito à manifestação individual, de uma utopia de justiça e fraternidade, num mundo que acabava de viver o pesadelo nazi-fascista. E o cinema, elo único entre os mundos artesanal, industrial e tecnológico do século 20, era necessariamente o instrumento por excelência dessa revolução.
Nada mais atraente, para os jovens intelectuais, artistas e cineastas latino-americanos daquele momento, do que essas idéias e os filmes que, em nome delas, começavam a chegar então ao nosso continente. Além de seus valores morais e políticos, os filmes de Rosselini, Visconti, De Sicca e outros, possuíam uma iconografia social e humana que, reproduzindo o estado de ruína e miséria italiano no pós-guerra, se aproximava do que víamos em nossas próprias cidades e campos, em nossas favelas operárias e em nossos camponeses semi-escravizados.

No início dos anos 1950, a presença no continente de Cesare Zavattini, encontrando jovens cineastas locais, fazendo palestras e dando aulas no México, em Cuba e, se não me engano, também no Brasil e na Argentina, reforçou esse laço entre as duas cinematografias. Além de roteirista de alguns dos filmes mais importantes do neo-realismo, Zavattini era também, ao lado de Guido Aristarco, um dos principais teóricos do movimento.
Um novo cinema latino-americano surgia sob essa nobre influência italiana, em vários países do continente. “El Mégano” e “Histórias de la Revolución”, do cubano Tomás Gutierrez Aléa, ou “Tire die” e “Los Inundados”, do argentino Fernando Birri, são exemplos desse DNA no novo cinema latino-americano. “Histórias de La Revolución”, por exemplo, tinha como fotógrafo o italiano Otelo Martelli, responsável por vários filmes neo-realistas. No Brasil, dentro da mesma onda continental, Nelson Pereira dos Santos realizaria, em 1955, o seminal “Rio, 40 graus”, fundador do cinema brasileiros moderno.


Mas, por causa mesmo da excelência e do sucesso de filmes como “Rio, 40 graus”, o cinema latino-americano correu o risco de se tornar uma caricatura do cinema italiano, uma espécie de neo-realismo de segunda mão. Não só pela diluição que se seguiria a esses filmes, como também pela apropriação de algumas de suas características pela onda “industrial” que circulava pelo continente.
No Brasil, essa tentativa de “industrialização” se deu, sobretudo, a partir da experiência da Vera Cruz, companhia produtora fundada em São Paulo por empresários que, para dirigi-la, trouxeram de volta ao país o cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti, então vivendo e trabalhando entre Londres e Paris. Cavalcanti logo se desentendeu com seus patrões e a Vera Cruz acabou nas mãos de profissionais de cinema importados da Itália pelos donos da empresa, filhos de imigrantes com nomes como Zampari e Matarazzo.
Esses escritores, diretores, fotógrafos, editores e outros técnicos, impuseram à Vera Cruz um realismo de estúdio, filho tropical do neo-realismo com a tradição do chamado “cinema de qualidade” europeu-ocidental. O filme que marcaria a passagem da Vera Cruz pela história do cinema brasileiro, acabaria sendo o popular “O Cangaceiro”, realizado por Lima Barreto, artesão competente e grande admirador de westerns americanos.
Embora tratasse um fenômeno do sertão brasileiro como se fosse um cowboy da Califórnia, “O Cangaceiro” chamaria a atenção para uma fonte original e inesgotável de narrações próprias da cultura popular brasileira, quase inédita na nossa cinematografia.

O filme contava as aventuras de um cangaceiro, bandido do sertão nordestino associado, pela população pobre da região, à idéia de justiça pela violência privada e da resistência aos barões dos latifúndios locais. Um mito há muito presente na literatura nacional da primeira metade do século 20 e que, um pouco mais adiante, assombraria a todos como personagem de um abalo decisivo nos cinemas brasileiro, latino-americano e, creio, mundial. Um abalo de natureza barroca, capaz de romper com a recente tradição neo-realista.
Quando Glauber Rocha fez “Deus e o diabo na terra do sol”, não estava apenas fazendo uma síntese política e poética da proposta de cinema dos novos cineastas brasileiros; mas também recuperando, pela via do cinema, a presença do barroco na cultura moderna do continente. Com isso, evitava a impotência de um certo colonialismo de esquerda, um “colonialismo esclarecido”, a reprodução de um modelo que, apesar de sua grandeza, seria capaz de sufocar nossa própria personalidade.
A partir do barroco ibérico, impregnado em nossa cultura desde o século 16, Glauber foi buscar no barroco-romântico do compositor Villa Lobos, no barroco-épico do escritor Guimarães Rosa, no barroco-místico do poeta Jorge de Lima, as fontes da tradição barroca da cultura latino-americana, erudita ou popular. E, de repente, descobríamos que a modernidade também podia ser barroca.
Esse barroco aggiornato, de caráter revolucionário, nos inseria no mundo moderno com origem e identidade, portanto com personalidade. Imaginávamos que, com ele, poderíamos falar de nós mesmos sem termos que buscar signos que não nos pertenciam, mesmo que fossem dignos de nossa admiração. Não se tratava de um vão nacionalismo triunfalista, mas da afirmação de nossa diferença. E essa idéia incendiou o coração do Cinema Novo brasileiro.


Em 1964, “Deus e o diabo na terra do sol” representou o Brasil na competição oficial do Festival de Cannes, ao lado de “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos. Eu estava presente na primeira sessão do filme de Glauber Rocha, naquele festival, pude presenciar a perplexidade dos espectadores europeus diante daquela geografia física e humana inédita, algo que eles nunca haviam conhecido antes. Acho que foi um momento fundamental para que nós entendêssemos porque valia à pena fazer cinema no Brasil.
“Deus e o diabo na terra do sol” tornou-se um estandarte histórico em nosso cinema. Mas ele não estava apenas se inserindo na história do cinema mundial, abrindo novos caminhos para ele. Com sua lógica particular, o filme inventava a imagem de um país e de uma cultura especial que nunca fora registrada antes. Toda a história do Cinema Novo, aliás, foi sobretudo isso – a invenção de um cinema para o país e de um país para o cinema.

Tendo sido a recuperação do barroco uma fonte fundamental dessa revolução paradoxalmente modernista, a gestalt barroca foi, através dos filmes, assumindo novas formas de manifestação. Muitas vezes, como no chamado Tropicalismo, movimento que explodiu no final dos anos 1960, no cinema, na música, no teatro, na literatura, em plena ditadura militar, ela se estruturou, contra um estado insuportável de coisas, através da banalização de todas as formas de expressão, da perda impiedosa de todas as auras artísticas e culturais. Num anarquismo com método, se podemos dizer assim.
Um pouco como na feijoada, nosso prato tradicional mais popular, originalmente inventado pelos escravos afro-brasileiros, que recolhiam as sobras das refeições dos senhores atiradas ao lixo, formando com esses dejetos uma comida substancial. A antropofagia indígena, que digere o outro para se valer de suas virtudes e de sua diferença, e a feijoada africana, que reúne as partes rejeitadas para fazer o todo desejável, são talvez os signos maiores do nosso desconcerto cultural.
Vejam, por exemplo, em “Macunaíma”, realizado em 1969, por Joaquim Pedro de Andrade, como o barroco não precisava ser necessariamente trágico e solene, mas que podia também se transformar em linguagem de grande violência e humor libertários.


Em 1990, o presidente Fernando Collor desregulamentou a economia do país e, na onda neo-liberal que se seguiu à nova agenda pública, eliminou a legislação que garantia e incentivava a existência de uma cinematografia no país. Da noite para o dia, a produção nacional praticamente desapareceu, reduzida a 2 ou 3 filmes por ano (número que, uma década antes, chegava a quase 100). Essa situação só começou a ser revertida a partir do fim dos anos 1990, com o advento de uma nova Lei do Audiovisual que, aos poucos, permitiu o surgimento de novo ciclo cinematográfico entre nós. Um ciclo que nos acostumamos a chamar de “Retomada”.
Diferentemente dos cineastas do Cinema Novo, em geral militantes universitários e cinéfilos que aprendiam o que sabiam vendo filmes e lendo livros, freqüentando cineclubes e cinematecas do Rio de Janeiro e de São Paulo, os novos cineastas da Retomada vinham sobretudo da televisão e da publicidade, duas forças crescentes no Brasil moderno, com grande repercussão social. Em vez de treinamento espontâneo e amador, a maioria deles passou, e ainda passa, pela educação formal das escolas e dos cursos de cinema emergentes, que até hoje se multiplicam pelo país afora.
O projeto do Cinema Novo era muito simples, tinha um programa de apenas três pontos: mudar a história do cinema, mudar o Brasil e mudar o planeta. Buscava-se, em suma, um sentido para o mundo. Já os jovens cineastas da Retomada são filhos de seu tempo – para eles, o filme vem antes do cinema, a dramaturgia submete o discurso, o olhar é mais importante que o olho, o interesse pelo indivíduo concreto prevalece sobre a abstração das utopias.

Talvez seja esse o motivo pelo qual o cinema brasileiro tenha deixado de ser épico e barroco, como tinha sido um dia sua tendência hegemônica, para tornar-se realista e melodramático, trocando a nacionalidade dos signos pela naturalidade dos indivíduos. Como se introduzisse, entre nós, a experiência de um olhar mais próximo da realidade pontual, de onde estão excluídos a ilusão e o sonho, onde a velha e fracassada utopia revolucionária é substituída pelo desejo de mobilidade social e pelas questões de base no seio da família, único grupo social salvo do individualismo radical de nosso tempo, na luta pela sobrevivência cotidiana.
Para o Cinema Novo, importava moral, cultura e política; para os cineastas da Retomada, afeto, arte e tecnologia. E é assim que eles se inserem no cerne da crise da pós-modernidade tentando, como escrevia Hervé Aubron, “evitar a disjunção contemporânea entre ambição formal e élan humanista”.
O grande momento de inflexão da Retomada, em relação ao passado do cinema brasileiro, é aquele em que os jovens cineastas somam a iconografia social do Cinema Novo à dramaturgia do moderno melodrama, via Wim Wenders, Quentin Tarantino ou Pedro Almodóvar, conforme o gosto de cada um, atualizando o Brasil com o que se passa no resto do mundo. Um novo realismo se sobrepõe à tradição barroca, um outro país começa a ser construído em nosso cinema. O barroco modernista não cabe mais em nossas telas; aliás, as próprias idéias modernistas não significam mais nada para nós.
O exemplo maior desse tropo (ou talvez mesmo a sua inauguração, no tempo) está em “Central do Brasil”, filme admirável, de 1998, dirigido por Walter Salles, o chef de file da Retomada, grande sucesso popular e artístico, no Brasil e em todo o mundo.


Diferentemente de 50 anos atrás, hoje, quando o cinema já é mais que centenário, se filma em todo lugar do planeta. O cinema não é mais uma exclusividade de países desenvolvidos e ricos, nem privilégio de classes ou castas dentro de cada nação; segmentos menos poderosos de suas sociedades têm se manifestado através dele, de forma contundente e assídua. Da Tailândia à Romênia, do Mali ao Paraguai, nas favelas do Rio de Janeiro ou nos subúrbios de Paris, os filmes são feitos com uma certa regularidade e transitam pelo mundo todo.
Claro, nem sempre o trânsito desses filmes se dá pelo mainstream do mercado. Mas, certamente, nunca deixa de passar pelos festivais, especializados ou não, que se multiplicam por todos os continentes. E esses festivais servem como real alternativa à exibição do que é rejeitado pelo grande comércio, dão existência social ao que não passa por ele. (Só no Brasil, temos hoje 132 festivais de cinema em atividade, em cidades grandes ou pequenas, ricas ou pobres, através de todo o país).
Esse fenômeno universal dos festivais criou uma verdadeira rede alternativa de exibição cinematográfica, que alimenta suas preferências exercendo um controle crítico sobre ela, buscando sua própria valorização e legitimidade na contraposição sistemática aos sucessos de público do mainstream.
Assim como, a partir de certo momento do século 19, a música foi-se dividindo entre o “popular” e o “erudito”, assim também hoje, no cinema, o público escolhe o samba que prefere nos multiplexes de shoping centers, enquanto os especialistas ficam com suas sinfonias nos festivais mais exigentes – um cinema popular e outro erudito, digamos assim.
E tanto um quanto outro, passam a estabelecer regras de comportamento que delimitam as fronteiras intransponíveis dos dois reinos opostos. Muito naturalmente, essas regras necessitam de uma uniformização para serem melhor compreendidas em qualquer parte do mundo unificado.

A globalização da economia necessita de produtos únicos, capazes de provocar o desejo de consumo em qualquer mercado do mundo. Como na economia, as forças hegemônicas da produção cultural precisam também vender seus mesmos produtos, em mercados de gosto igualmente “mesmificado”.
Para isso, têm que unificar tendências em torno de uma certa lógica formal, assimilável por todos, que possa ser consumida em qualquer canto do planeta. E essa necessidade não é sentida apenas pela produção hegemônica do mainstream, mas também pela produção alternativa que tem o desejo legítimo de viajar (esse signo de nosso tempo), através dos festivais e dos circuitos especializados que dependem deles.
Assim, no mundo inteiro, há um evidente mal estar, uma espécie de incômodo cultural no mundo globalizado de hoje, em relação ao barroco. É necessário exilá-lo, promover sua neutralização como instrumento de alienação dessa nova ordem, como o lugar desconfortável da diferença, do imprevisto, da identificação, da origem.

Põe-se, no lugar da desmedida, da irreverência e do delírio barrocos, o naturalismo que mais corresponda ao limite do que nossos olhos físicos podem ver, ao alcance de todos. A imagem da realidade é essa mesma que nós estamos vendo agora, o cinema é apenas um registro do que vemos, a confirmação mecânica do que nossos olhos enxergam. E todos a podem absorver naturalmente, de Pequim a Nova York, do Cáucaso à Patagônia.
Com isso, perde muito o cinema em surpresa e invenção; mas sobretudo em diversidade, essa capacidade de absorver as diferenças humanas de todos os pontos de vista, do geográfico ao social, do cultural ao étnico, do material ao espiritual. Perde, portanto, o conhecimento do outro, aquilo que dá ao cinema a sua grandeza civilizatória.
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Essa grandeza civilizatória só se dá a partir do mergulho numa realidade contemporânea, é claro, sem o qual é impossível dar-se conta do estado do mundo. Mas não se submete a ela, apenas constrói sua versão dela. Como se o autor do filme tivesse consciência de todos os elementos da tragédia contemporânea, mas os combinasse sem as regras de uma lógica formal preconcebida, fora dela.
Aliás, o que existe de melhor, na nova geração de cineastas brasileiros, está exatamente no prazer eufórico de filmar, na excitação com a fabricação da imagem, no olhar permanentemente cinematográfico sobre todas as coisas a seu redor, uma vitória do filme sobre o cinema, da sensação sobre a idéia, do indivíduo sobre as conveniências à sua volta. A consciência de que o real não é apenas o visível; de que o filme não é somente uma reprodução do real, mas também uma produção de real.


A cultura e a arte são produzidas num determinado espaço geográfico e humano a que chamamos de nação; mas elas são o resultado de uma criação do imaginário de pessoas e, portanto, de indivíduos que a pensam, mesmo que eles precisem da compreensão, da solidariedade ou de algum interesse de seus pares. O grande mal da cultura produzida sob todos os totalitarismos do século 20 é que seu controle massacrava essa individualidade de seus cidadãos, a sua diversidade.
Por alguma coisa fundamental para a inteligência humana, a diversidade, fruto da liberdade e da exclusão da ordem autoritária, merece sempre ser celebrada – ela demonstra que o pensamento não pode ser bi-polar, que o oposto de um certo mal não é necessariamente um certo bem, ou vice-versa. A ética da diversidade, digamos assim, é exatamente sua maior virtude.
No horizonte dos novos modos-de-fazer, das novas tecnologias e de sua convergência, encontra-se a democratização do audiovisual e do cinema. Ela produzirá uma espécie de re-distribuição do conhecimento, uma re-distribuição da riqueza cultural capaz de mudar o mundo. Nosso papel, nessa narrativa, é fazer os filmes que só nós sabemos e podemos fazer; do contrário, nossa inserção no mundo do cinema não valeria à pena, a não ser como mera carreira burocrática.

Através dessas novas tecnologias e do acesso a elas de novas camadas de nossa sociedade, os cinemas brasileiro e latino-americano podem muito bem se tornar, para o século 21, aquilo que Hollywood foi para o século 20, em matéria de produção e reprodução do mundo em que vivemos. E tenho certeza de que poderíamos realizar essa vocação, fazendo isso de um modo melhor do que já foi feito, com mais compaixão, fraternidade e humanidade.
Para isso, precisamos pular, sem nostalgia, por cima de tudo que não conseguimos resolver no passado, e cair direto no século 21, no seio das questões de hoje. Para isso, precisamos estimular a diferença e a diversidade, demonstrar, com nossos filmes, que o cinema tem marcos mas não tem limites. Para isso, não bastam os olhos bem abertos, mas algo mais que vemos sem o olhar.
CD, 10 de outubro de 2008

Por Carlos Diegues