Artigo

José Celso Martinez Corrêa, conhecido como Zé Celso, no Teatro Oficina Marcos Alves / Foto: Agencia O Globo

O bom, justo e revolucionário hábito léxico

Cacá Diegues - Jornal O Globo - 09 de julho de 2023

Somos prisioneiros de obsessões doidas de uma certa elite que não nos deixa falar e agir como quisermos


Eu tinha prometido a mim mesmo não falar mais de mortes, sobretudo as de gente de minha geração. Mas ela já está mesmo indo embora e, dessa vez, quem se encantou foi nosso grande José Celso Martinez Corrêa. Repito aqui o que o presidente Lula disse dele: “O Brasil se despede hoje de um dos maiores nomes da história do teatro brasileiro, um de nossos mais criativos artistas”.

Aos bolsonaristas tarados lembro que nos últimos anos morreu gente como João Gilberto, Paulo Gustavo, Arnaldo Jabor e outros grandes artistas brasileiros. Nosso ignorante e agressivo ex-presidente não se manifestou por nenhum deles. Mantendo-se calado, não permitiu que o Brasil oficial reagisse ao desaparecimento dessa elite cultural, a fina flor dos brasileiros que valem a pena.

Agora, nos dias de hoje, a novidade entre nós é o racismo que não é mais apenas um aparato de direita mas também uma formulação de esquerda, dividida entre uma “esquerda” oportunista e uma outra que, não sabendo para onde ir, tenta convencer seus eventuais apoiadores de sua isenção.

Inventaram um “lugar de fala” que só permite a quem já viveu experiência semelhante se expressar sobre o que se vê ou o que se conta. Shakespeare não poderia jamais descrever a paixão entre Romeu e Julieta, pois ele nunca esteve na Itália, onde se passa a tragédia imaginada pelo dramaturgo. Assim como nosso Chico Buarque não poderia nunca ter escrito suas canções femininas, já que ele nunca foi uma senhorita, como as que descreve ali.

Bem que podíamos ressuscitar alguns de nossos melhores autores, como Darcy Ribeiro ou Sérgio Buarque. Ou ainda Glauber Rocha, Ferreira Gullar ou Zé Celso. Com cartas escritas por qualquer deles podíamos, no estilo que sabemos de cada um, pôr as coisas em seus devidos lugares.

Muitas palavras que já se incorporaram à nossa língua foram proibidas de existir. Algumas até bem significativas, como “mulata”, expressão que hoje faz parte da fala brasileira, sem nenhuma correspondência ao que é dito em outra língua.

A burrice antropológica nos diz que essa palavra é originária de “mula”, que se refere ao animal que carrega o peso de nossa encomenda. Mas não interessa se a origem da palavra é mesmo essa; de qualquer modo é um enriquecimento de seu sentido, tornando nossa língua mais rica e alternativa.

Mais do que essas palavras, cujo “significado” impede que as usemos, existem outras mais carinhosas, sem nenhum significado antigo e secreto, que não podem ser usadas por causa da necessária correção de nosso pensamento. Uma espécie absurda de palavras “politicamente incorretas”, como “neguinha”. Como cantaremos então a bela canção crítica de Caetano Veloso? Ou como substituiremos as palavras na “Aquarela do Brasil” (nosso hino nacional popular) quando nos referirmos ao “mulato inzoneiro”?

O vereador Waldir Brazão, ligado a essa correção de nossas ideias através de palavras mais convenientes, fez passar um seu projeto de lei que torna ofensiva a distinção entre os sinais “social” e “serviço” nos nossos elevadores. Não adianta lhe explicar que basta deixar qualquer um usar o elevador que bem entender! Somos prisioneiros dessas obsessões doidas de nossa “elite léxica” que não nos deixa falar e agir como quisermos. E ser de esquerda é, antes de tudo, ser um democrata em defesa do povo e de sua expressão.

Nos filmes brasileiros mais recentes, são negros os responsáveis por dois de nossos mais bem sucedidos títulos: “Medida provisória”, do baiano Lázaro Ramos, e “Marte Um”, do mineiro Gabriel Martins. Quem vai explicar a eles que seus filmes precisam também garantir seu sucesso junto ao público nacional e internacional pelo que forem capazes de falar mal do cinema?

Em nosso socorro vem Angela Davis, a escritora americana que influenciou toda uma geração lá e cá. Uma influência que se espalhou pelo mundo como chave na elaboração de um novo pensamento de esquerda, a partir de meados do século passado. Ela acaba de publicar um livro que ignora totalmente essa besteirada de palavras que não podem mais ser usadas pelo pensamento contestador do estado do mundo. E diz simplesmente que “criminalizar o racista não vai eliminar o racismo”. A prisão e a polícia, mais do que nunca, não vão solucionar os problemas sociais do mundo de hoje.