Artigo
A volta do futuro
Cacá Diegues - Jornal O Globo - 25 março 2022
A Academia Brasileira de Letras (ABL) vive, desde sexta-feira passada, um
momento novo e brilhante em sua história. Não somente na sua história
particular, como também novo e brilhante na história contemporânea do país.
Sexta-feira, dia 25 de março, tomou posse como membro da Academia nossa
grande Fernanda Montenegro, eleita para isso e por rara unanimidade dos votos
acadêmicos no final do ano passado.
Fernanda não representa apenas o que existe de melhor no teatro brasileiro, uma
síntese excepcional da interpretação que um ser humano pode fazer de um outro
ser humano, mas também a imagem de uma forma de pensar o Brasil e o mundo
que nasceu com a sua geração de artistas e intelectuais. Antes, na minha
juventude, dona Arlete me lembrava as melhores tradições de nosso teatro a
caminho do cinema. Hoje, ela é a lembrança de tudo que aprendi a compreender
e amar nesse país tão difícil e tantas vezes traído.
Não sei como e onde ela aprendeu esses sentimentos todos e essa cultura tão
vasta e antiga de coisas que se tornaram nossos costumes porque seus amigos e
amigas, sobretudo parceiras e parceiros, assim desejaram. Hoje, grande parte do
que sabemos de onde viemos devemos certamente a Fernanda por tudo que ela
nos mostrou nos palcos e depois nas telas de cinema.
Em 1973 fiz um filme contando as histórias de famílias de minha terra que meu
avô me contava às gargalhadas. O personagem principal vinha da Europa e
descobria comigo essa misteriosa cultura local, se atrelava de tal maneira a ela
que acabava sem fôlego no varandão da Casa Grande. Como a famosa atriz não
teve como vir dublar o filme no Brasil, foi Fernanda quem me socorreu,
emprestando ao personagem sua voz tão cheia de significados de coisas que não
eram ditas. Fernanda Montenegro tornou-se minha Joanna Francesa e sei que
devo a ela grande parte do sucesso de estima desse filme. Fernanda soprava esussurrava
as verdades que Joanna ia descobrindo e assumia o que ela vinha
assumindo.
Mas o que faz de Fernanda Montenegro uma enorme representante de tudo que
amamos nesse país tão difícil de ser, nesse momento, amado, não sai
necessariamente de suas lembranças do passado e de costumes que não eram
seus. Sai do que ela aprendeu e agora nos ensina, confiando em que ainda
vivemos numa sociedade que, por pior que pareça, será sempre repositório de
esperanças que não se perdem. Porque a verdade não morre, mesmo que
desfaleça em aparência e nos deixe meio perturbados com isso.
A eleição de Fernanda Montenegro, por unanimidade, para a ABL é uma vitória do
Brasil que nós amamos e não queremos perder de vista. Com ela a nos chamar
nossa atenção, isso não acontecerá nunca mais. Mas, por via das dúvidas,
insistimos em contemplar dona Arlete e a farta família que formou com Claudio e
Nanda, fazendo com que recuperemos nossa confiança num futuro que ainda
podemos, se tivermos o mesmo caráter que eles, viver intensamente.
O poder exercido por em quem nunca confiamos, não pode ser mais poderoso e
definitivo que o amor e a fé que temos em nossos verdadeiros heróis. Em mais
alguns breves meses, estaremos acordando do pesadelo em que vivemos durante
esses últimos anos, graças ao acaso de eleições desprezadas e desprezíveis.
Aí poderemos novamente olhar para a frente, como sempre fizemos, porque lá
estará nossa certeza de que é para ali que o Brasil, apesar de tudo, ruma. E lá
estarão também e para sempre as mãos e um sorriso que aprendemos a amar e a
confiar neles, esses sim, como um de nossos guias. As mãos e o sorriso de
Fernanda Montenegro.