Artigo

A bandeira do porvir

Cacá Diegues - Jornal O Globo - 03 Julho de 2022

Danuza foi uma agitadora de ideias femininas sem discurso óbvio e manjado. Um dia se lhe fará justiça


Danuza Leão se encantou, como costumava dizer Guimarães Rosa. Como todo gênio que atua em espaço escolhido a dedo pelo destino, Danuza foi uma agitadora de ideias femininas sem discurso óbvio e manjado. Um dia, seu papel social na formação de um Brasil moderno ainda será mais bem entendido e se lhe fará justiça (como a tantas outras mulheres do período), mesmo que o Brasil não tenha tomado o rumo com que ela e todos nós sonhamos. Talvez só nos livrando de quem hoje nos sufoca compreenderemos melhor o que Danuza nos propunha, mesmo que não tivesse consciência disso (será que não tinha mesmo?).

Joaquim Ferreira dos Santos: Foi num banquete que Danuza Leão me disse a etiqueta definitiva: 'Cafona mesmo é ser chato!'

Quando dei por mim, Danuza tinha ido embora e com ela uma amizade que acabei abandonando antes do tempo. Sempre gostei muito de tudo que tinha a ver com ela, de cabo a rabo. De Pinky, por exemplo, a filha mais velha, longa e enorme admiração em minha vida, que, quando era mais jovem, me deu ânsias de ser jovem de novo. Danuza Leão não foi só a experiência de uma vida a serviço do país e de tudo o que ela, lá do jeito dela, achava importante. Ela foi também um fundamento crítico na vida de muita gente, como na minha. Um dia, quem sabe, a gente dá um jeito de se explicar. Ou fica por isso mesmo. Só não posso deixar de dizer, a quem não foi, do verdadeiro valor de Danuza Leão, a eterna encantada que nos encantara para sempre.



Danuza Leão em Copacabana em maio de 1978, aos 45 anos — Foto: Reprodução

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A propósito do assassinato de Dom e Bruno, li no jornal uma estranha expressão que não sei se já existia antes e ao que servia — “remanescentes humanos”.

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Por contradição, lembrei-me de uns poemas de Oswald de Andrade, um de nossos líderes exemplares do Modernismo. Um deles, “Canção da esperança”, lá para as tantas dizia assim: “O céu e o mar/ Atira anil/ No meu Brasil./ Sobre a cidade / Flutua/ A bandeira do Porvir”.

O Brasil bem que podia ter sido mesmo assim. Ou, pelo menos, tentado ser.



O canto da floresta: Bruno Pereira entoando música indígena vira símbolo de sua luta — Foto: Reprodução

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Profissionais da cultura, os cineastas brasileiros sabem que nem sempre serão entendidos pelos senhores do país. Esses reproduzem o que seus eleitores desejam agora; enquanto nosso compromisso é com o Brasil com que sonhamos. Nunca nos entendemos cem por cento. Mas, em nome da democracia e do restante do país, sempre que havia conflito saíamos em busca de solução. A certa altura, alguém tinha que ceder. E cedia.

Em todo país do mundo, rigorosamente todos, o cinema depende de leis e de regras públicas. Todos nós sempre reagimos contra certas decisões dos governantes que, por sua vez, se mostravam muitas vezes insatisfeitos conosco. Mas quase sempre esse conflito acabava sendo superado na pauta da próxima reivindicação.

Agora não. Agora não tem sido mais assim. Agora esse não é mais um governo que, às vezes, não tem jeito de nos atender. Esse não é um governo que está contra nós; mas um governo que é contra nós. Um governo que se dedica a exterminar a cultura, afastá-la do povo brasileiro, como se a cultura fosse arma perigosa na mão dele. Uma arma que precisa ser eliminada e trocada pelos fuzis cuja propriedade eles têm facilitado.

Um governo autoritário e destrutivo, sempre atento a ser contra e ter medo da invenção criadora das artes em geral. Desse jeito, jamais poderemos mesmo nos entender, mesmo que por um milagre o cara consiga ser reeleito em outubro.

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O quê? Lula diz de novo que, se for eleito, quer “regular” a imprensa? Ah, meu Deus, esse Porvir de Oswald vai custar mesmo a chegar!