Depoimentos

Formatura do curso de Comunicação da Universidade Casper Líbero.

Discurso de Paraninfo da formatura do curso de Comunicação da Universidade Casper Libero, em São Paulo, em 26 de janeiro de 2006.

Como não pertenço ao mundo acadêmico, tomei um susto quando recebi o honroso convite de vocês para ser patrono de sua turma. À surpresa, somou-se uma coincidência da qual me dei logo emocionada conta. Tenho uma filha de 19 anos, Flora, que está no primeiro ano de uma faculdade de Comunicação como a de vocês. Ela está portanto iniciando uma trajetória que vocês hoje encerram, começando algo que vocês estão terminando. Assim, como não conheço as tradições acadêmicas para discursos do tipo deste que lhes devo fazer, resolvi simplesmente reproduzir alguns pontos de minhas conversas com Flora sobre o assunto, uma transcrição aproximada do que costumamos falar entre nós. Além do que eu diria hoje à minha filha, se ela estivesse aqui e fosse uma de vocês.

O mundo em que vivemos hoje se caracteriza pela crescente importância do conhecimento como instrumento de hegemonia de nações e de grupos sociais no interior delas. Cada vez mais, esta é a moeda que compra o poder concentrado, a imposição do modo-de-viver de uns sobre o modo-de-viver de outros. Mas quando este conhecimento é compartilhado, é através dele que se promove uma melhor distribuição da felicidade entre os homens. É a isso que chamamos de Civilização e o instrumento deste compartilhamento é a Comunicação.

Quando, na Europa do Renascimento, a imprensa foi inventada, ela produziu uma potencial redistribuição do conhecimento, antes privilégio de poucos protegidos da Igreja e dos Barões, enfurnados em seus mosteiros e castelos. Novas parcelas da população européia se alfabetizaram rapidamente, estimuladas pela novidade que punha o saber ao alcance de muitos mais, uma revolução material de conseqüências espirituais. Hoje são as novas tecnologias digitais e o avanço da informática que representam esse papel, numa espécie de "alfabetização audiovisual" de multidões, a difusão acelerada de uma nova forma de conhecer o mundo. Quando vocês, muito generosamente, escolheram um cineasta brasileiro como patrono de sua turma, estavam certamente homenageando o papel do cinema nesta revolução do conhecimento, no Brasil e no mundo.

Como cineasta, pratico uma forma de produção cultural mais ou menos recente, embora anterior a essa revolução contemporânea. O cinema, inventado em 1895, na virada do século da indústria para o século do espetáculo, uma ferramenta de transição entre um mundo artezanal e um mundo tecnológico, nada mais é do que o avozinho, mais do que centenário, dessa família em que a televisão é a sobrinha mais bem sucedida e sapeca, os videogames um bando de primos meio transviados e a internet a caçula mimada e mais promissora dela.

Esta última inaugura, nesta linha de sucessão audiovisual, um universo novo de comunicação instantânea, sem centro e sem controle, sem destino previsto e sem liderança imposta, distributivo e diverso. Através dela e das conseqüências de sua tecnologia de base, cinema, televisão, publicidade, jornalismo e todas as outras formas de comunicação que a humanidade já tenha inventado, convergem para um mesmo redemoinho centrípeto em que, idealmente, tudo estará ao alcance de todos.

Aliás, segundo o jornalista e pensador Steven Johnson, a internet se estrutura numa forma de auto-organização muito parecida com a do próprio cérebro humano, funcionando mais ou menos dentro do mesmo mecanismo de sinapses.

De qualquer modo, dentro ou fora da internet (esse espaço de conhecimento universal, quase sem limites), a "alfabetização audiovisual" se expande muitas vezes para além das fronteiras da comunicação que está sob permanente vigília dos Estados, de maneira quase incontrolável.

Os filmezinhos feitos por militares americanos, sobre tortura de prisioneiros no Iraque, produziram uma comoção moral de conseqüências globais. Os registros do tsunami, feitos por turistas nas praias do sudeste asiático, no fim do ano de 2004, não provocaram menos emoção do que as superproduções hollywoodianas de filmes de catástrofe. E agora, em 2005, uma simples camerazinha à toa deflagrou, ao registrar um funcionário recebendo propina nos Correios do Brasil, nossa maior crise política dos últimos tempos.

Não é à toa que os regimes autoritários de Estados fortes, como na China e em Cuba, ou os regimes fundamentalistas, como alguns do mundo árabe, proibem, controlam ou simplesmente bloqueiam o acesso à grande rede. As novas tecnologias impulsionam, e devem mesmo impulsionar, a comunicação do conhecimento de uma forma cada vez mais incontrolável. E isso é bom para a humanidade.

Quando, há um tempo atrás, fui convidado a dar a aula inaugural do primeiro curso regular de audiovisual da CUFA (Central Única das Favelas), uma ONG carioca coordenada por moradores daquelas comunidades, pensei com receio em como deveria introduzir o assunto tão especializado para mais de uma centena de jovens carentes, com pouco ou quase nenhum acesso à educação. Para minha surpresa, parte do primeiro dia daquele curso foi tomada pela exibição de filmes já feitos pelos próprios alunos, imagens captadas em mini-DVs domésticas e finalizadas em programas de edição simples, como o Final Cut, tudo muitas vezes adquirido em sistema cooperativo.

Hoje, mais de três anos depois, esses filmes, produzidos por conta deles mesmos, registros documentais ou ficcionais de suas próprias vidas e da vida em suas comunidades, se multiplicam e já compõem, em seu conjunto, uma cinematografia original e específica, ocupando espaço inédito no cinema brasileiro. Em todos os sentidos, uma espécie de "cinema de periferia", nas franjas do injusto e tortuoso desenho da sociedade brasileira. Antes de tudo, são filmes que buscam a imagem nunca vista e que nós, o olhar de fora, jamais seríamos capazes de ver como eles a vêem.

Foi mais ou menos em nome dessa idéia original que minha geração, aquela do que se convencionou chamar Cinema Novo, se dedicou à construção de um cinema brasileiro. Como dizia um de nós, um país sem cinema é como uma casa sem espelhos, seus habitantes jamais verão seu próprio rosto, nunca saberão quem são. Tenho dedicado toda a minha vida a ajudar a descerrar este véu à frente do espelho.

Porém essa "alfabetização audiovisual" a que estamos nos referindo faz com que o conhecimento e sua comunicação não sejam mais uma exclusividade de especialistas e profissionais como nós. Mas nossa indispensável missão se torna ainda mais nobre e decisiva – aos especialistas e profissionais compete aprimorar a qualidade do que é informado, em todas as áreas da comunicação, dando sentido e correção a ela. E, sobretudo, cabe a nós proteger, de modo radical, o direito à sua livre circulação.

Os jovens que estão se formando hoje em nossas Universidades não viveram, felizmente, a experiência cruel de 21 anos de ditadura militar e do que eles significaram enquanto bloqueio ao progresso moral, cultural e espiritual do país. Mas todos nós podemos aprender de exemplos históricos que não vivemos mas dos quais tomamos conhecimento, exemplos como os dos regimes totalitários e seus genocídios sistematizados que provocaram tanta catástrofe humana durante o século 20. É para isso que serve a História e é diante de tais exemplos históricos que devemos nos comprometer radicalmente com a democracia e sua idéia de liberdade, sem a qual não há dignidade humana possível, sem a qual é impossível exercer o nosso melhor destino de seres humanos.

Afinal de contas, nós, homens, somos apenas uns bichos como quaisquer outros, nossa originalidade em relação aos outros é a de sermos os únicos a sofrer a maldição da consciência de estar no mundo, geradora da perversão insaciável de desejar mudá-lo através do progresso. É para isso que nos comunicamos uns com os outros e essa comunicação é a fonte da Civilização.

Vocês, jovens e novos comunicadores de jornalismo, de publicidade e propaganda, de rádio e de televisão, de relações públicas, de cinema e de audiovisual em geral, têm o dever de exercer a liderança dessa missão civilizatória, com os olhos voltados para um Brasil do futuro, livre da miséria, da injustiça e da ignorância que queremos combater e derrotar. Para isso, duvidem sempre, sejam sempre curiosos, procurem sempre novos caminhos e não tenham medo da crise, pois a crise faz parte da natureza humana.

Muito boa sorte para vocês todos, desejo que vocês sejam muito felizes na bela profissão que escolheram.
Muito obrigado.

Por Carlos Diegues