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Cazuza — Foto: Divulgação

Os caminhos perderam a nitidez

'Antigamente era mais fácil você ser de direita ou de esquerda, ser careta ou ser doidão, as coisas eram mais definidas', disse Cazuza

A gente precisa aprender a dar o devido valor aos poetas, músicos, cineastas, inventores, animadores etc. que nos antecederam. Àqueles que, tendo sido simultâneos ou anteriores a nós e ao que nós fizemos, tenham colaborado de algum modo com não deixarmos que, apesar de tudo, a cultura do país se tornasse um saco de qualquer coisa como queria a ditadura dos políticos e dos militares que haviam tomado conta do Brasil.

Isso inclui Cazuza, poeta e compositor que acaba de ter sua vida lembrada e sua obra publicada por meio de dois belos livros que já circulam por aí. Esses livros, editados por Lucinha Araújo e Ramon Nunes Mello, falam da vida difícil e dos poemas e canções deixados por um jovem que, com 32 anos de idade, morreu vítima de Aids, a praga da época, em 1990.

Mal conheci Cazuza. Tive apenas dois ou três encontros com ele. No primeiro, ele foi nos levar a canção de “Um trem para as estrelas”, filme que havia pouco tínhamos terminado, com Guilherme Fontes fazendo o jovem saxofonista que teria composto a canção que se tornara tema do filme. Fiquei muito e inutilmente impressionado com ele e sua força pessoal, mas Cazuza não deixou que me aproximasse dele, nem de sua belíssima canção. Achei até natural seu comportamento, tive a impressão de que defendia (ou quem sabe protegia) sua obra de mãos estranhas a ela. Mais tarde, quando lesse o roteiro ou visse uma versão do filme pronto, ele entenderia melhor a canção e o que desejamos dizer com ambos.

Fiquei muito tempo sem encontrá-lo, a não ser em ocasiões menos comprometidas com missões artísticas ou políticas como aquela.

Uma noite, Caetano Veloso me convidou para jantar no antigo Antonio’s quando já corria a história de que Cazuza tinha sido desenganado pelos médicos especialistas de Boston. Esse não era o tema de nosso jantar, mas seria impossível ignorá-lo sobretudo estando onde estávamos.

O fato é que o telefone tocou e Cazuza explicou que chegava logo. Caetano ficou surpreso como eu.

Lembro-me perfeitamente do aspecto de Cazuza ao chegar ao restaurante — estava mais magro e abatido, a palidez de seu rosto não tinha nada a ver com sua fama de praieiro, com as notícias na imprensa de que não saía da praia desde que havia voltado dos Estados Unidos e se instalado na casa de Lucinha e João Araújo em frente ao mar e retornado aos banhos de sol.

Cazuza falava com o estilo da época em relação aos que apesar de tudo se faziam entender por seu público. Confesso que tenho a impressão de ter sido grosseiro e pedido a Cazuza que não fosse tão daquele jeito intempestivo.

Hoje, quem sabe, encontraria um jeito de lhe falar como Zuenir Ventura, o genial autor de tese sobre a “Cidade partida”: “Ele lutou uma luta perdida como se fosse o vitorioso. A dramática passagem da rebeldia à insurreição coincidiu com os primeiros sintomas da doença de Cazuza e da doença do Brasil. Foi quando se começou a sentir um processo paralelo, do sentido moral do país que se esgarçava, enquanto o sistema ideológico do compositor se deteriorava. Com uma diferença a olhos vistos, Cazuza reagia com fúria de fera ao ataque mortal, o país assistia como um carneiro à sua própria decomposição moral. Cazuza derrubou a hipocrisia e, não podendo vencer fisicamente a Aids, atingiu-a moralmente, atacando suas principais síndromes. Impediu que ela revogasse a imaginação, a fantasia e o prazer.”

E essa conclusão do próprio Cazuza, mais do que certeira: “Antigamente era mais fácil você ser de direita ou de esquerda, ser careta ou ser doidão, as coisas eram mais definidas. Hoje ninguém mais pode escolher caminhos porque os caminhos perderam a nitidez.”