Artigo
O que devemos a ele
A liderança e a genialidade de Glauber Rocha foram fundamentais, mas sem Nelson nada disso seria possível
Eu devia ter uns 15 ou 16 anos de idade quando vi pela primeira vez “Rio, 40 graus”, de Nelson Pereira dos Santos.
Já estava incorporado ao movimento estudantil e na verdade atendia a uma convocação da entidade secundarista que participava do esforço geral por sua liberação, pois o filme se referia a um calor de 40 graus que, segundo o Chefe de Polícia (a quem a Censura era submetida), nunca tinha feito na cidade. Só podia ser coisa de comunista tentando impedir o crescimento do Rio de Janeiro como polo de inevitável turismo!
Já estava comprometido com a existência de um cinema brasileiro e, naquele momento,desenvolvia essa ideia fundadora nas reuniões da Cinemateca do MAM, nas projeções da ABI, onde me permitissem falar, sempre levado por David Neves com quem tinha me aliado para fazer filmes experimentais com a pequena câmera de 16mm que ganhara de seu pai.
Entre uma convocação e outra, eu perguntava sempre se haveria debate no final das sessões. Se não houvesse, eu simplesmente não ia de jeito nenhum. Pra quê?
O que não queríamos era o que podíamos chamar de“cinema popular”. Aquele que justificava a existência de filmes como os que estavam sendo feitos no Sudeste do Brasil (Rio e São Paulo) por produtores fajutos que só pensavam na bilheteria.
Nós queríamos mais do que isso, queríamos um cinema de filmes que nos representassem de fato, que fossem uma reprodução do que éramos e do que queríamos ser. No fundo, o que queríamos mesmo era uma reprodução dos ideais do Modernismo no cinema, um jeito de contar nossas histórias como só nós podíamos e sabíamos contá-las. E tudo aquilo estava ali, na tela de “Rio, 40 graus”, como se fosse um milagre provocado por nossos corações e mentes.
Ninguém tinha jamais visto daquele jeito a realidade das favelas cariocas, matriz e exemplo de tantas outras espalhadas pelo Brasil, assim como ninguém ouvira a música popular de Zé Kéti do jeito que estávamos ouvindo agora. Em suma, a imagem que “Rio, 40 graus” nos passava era a de uma civilização dessemelhante, o tempo e o espaço só seriam identificados depois com novos hábitos todos revelados aos poucos por outros modos de registro do que éramos capazes de observar.
Acho que só senti emoção semelhante quando, um par de anos depois, vi “Orfeu da Conceição”, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, inaugurando a parceria entre Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Mesmo que não entendêssemos logo o que era, alguma coisa inédita se passava diante de nós. Nesse ano de 2024 comemoramos 60 anos da apresentação para o mundo do cinema brasileiro. Desse cinema que nós nos acostumamos a chamar de “Cinema Novo”. Não se trata mais de cuidar do Brasil, de nossas histórias de um modo diferente; mas de também filmá-las de um modo diferente. E novo!
Em 1964, chegamos ao Festival de Cannes, cheios de ideias novas pra quem as quisesse ouvir. “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Vidas Secas” estavam na competição e meu filme “Ganga Zumba” na Semana da Crítica. De certo modo tentamos explicar o que pretendíamos. Glauber Rocha afirmava que “Le Cinéma Novo, c’est moi”, e ele tinha toda razão. Ruy Guerra tinha feito “Os fuzis”, seu filme de Mestre. Joaquim Pedro de Andrade negociava a produção de seu “Macunaíma” com Claude Lelouch. E ainda havia tantos outros por lá ou esperando sua vez e sua hora no Brasil!
A liderança e a genialidade de Glauber Rocha foram fundamentais, assim como as contribuições de todos os outros. Mas sem Nelson, que sempre se considerou “pré Cinema Novo”, nada disso seria possível. Se Nelson Pereira dos Santos não tivesse filmado antes de todos, nós não seríamos nada.
Cinema Novo é, antes de tudo, acreditar que temos um papel de protagonista ao descobrir o que temos de melhor.