Artigo

Sala no Rio de Janeiro — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Hoje como ontem

Cacá Diegues - Jornal O Globo - 07 de janeiro de 2023

Nos anos 1970, conquistamos o gosto do público. não é porque os filmes não passam mais nas salas lotadas, como no passado recente, que devemos abrir mão daquele projeto de futuro


Estou marcado para ir papear com alguns amigos, fazer planos para esse misterioso 2024, saber como vão as coisas, estabelecer metas que serão alcançadas pelo estudo e o esforço de cada um de nós. Levo uma porção de perguntas para esse encontro.

Nesse momento, por exemplo, estou ansioso para estabelecer minhas metas até o fim do ano, o que fará um bem danado a todos nós. Eu escrevi “um bem danado a todos nós”, quando isso não é verdade. O “bem danado”, nesse caso, é servido a mim e a mais uns poucos. Nunca “a todos nós”. Falta-nos um critério, alguma coisa que nos diga que não é bem isso que as pessoas precisam ouvir. Todas as lógicas possíveis a serviço do que queremos dizer e os outros parecem precisar ouvir.

Chegamos ao fim do ano com vários sucessos rolando por aí. Na música, por exemplo, Paul tomou a iniciativa de pôr à disposição do público uma canção que John deixou gravada após deixar os Beatles, “Now and then”. Assim como os Rolling Stones, por iniciativa do grande Mick Jagger, publicaram um álbum completo com canções que vamos já, já sair tentando reproduzir por aí.

Não tem nada de mais. Tanto os Beatles quanto os Stones são exemplos do que de melhor andamos compondo e gravando pelo mundo afora. O que é que tem de errado aplaudirmos, onde bem estivermos, suas mais recentes produções? Sobretudo se as mais recentes forem, como tudo indica, as últimas. Que diríamos se as canções fossem escritas por Chico Buarque e Milton Nascimento? Elas continuariam excelentes, não é? Com a vantagem de estarmos dando força a quem merece.

Vamos fazer justiça aos dois: que Chico e Milton nos perdoem a citação, não queremos que desapareçam tão cedo, gente tão importante e criativa, em quem tanto nos inspiramos para fazer nossa arte. Apesar dos governos e de seus funcionários da Cultura nunca terem dado bola para o que produzimos.

Votei em Lula e votaria de novo, se fosse o caso. Não pretendo deixar nunca que o país caia nos braços de quem não o ama e muito menos esteja a fim de impedi-lo de se tornar dono de seu nariz, com independência para se manifestar diante do mundo. Detesto as guerras que estão fazendo por aí, não importa quem defende o quê, de que lado estão aqueles cujas ideias me parecem mais corretas. Praticou violência, agiu com barbárie, já não merece nossa aprovação.

Para simplificar o que penso, devo dizer que jamais votaria num cara como Jair Bolsonaro, só para tornar evidente meu desgosto. Não, isso não.

Os filmes brasileiros estão hoje fazendo fila nas portas das salas. Nada nos garante que eles serão exibidos para seu público, o mesmo público que antes deste tempo fez deles um sucesso capaz de se impor no mercado por seu gosto sincero, traduzido em rendas recordes. E não é porque os filmes não passam mais nas salas lotadas, como nesse passado recente, que devemos abrir mão daquele projeto de futuro.

No início dos anos 1970, nos tornamos uma cultura nacional bem-sucedida, porque conquistamos o gosto do público (isso era o mais importante), além da confiança do governo Geisel graças à confiança de seu ministro do Planejamento e da Secretaria de Cultura, então um âmbito do Ministério da Educação. Com o cineasta Roberto Farias à frente da Embrafilme, tornamos essa empresa do Estado a mais poderosa companhia cinematográfica de produção e distribuição da América Latina.

O resultado de nossos filmes nessa combinação de Embrafilme com Mercado foi tão significativo que quase virou um fenômeno mundial exemplar, a ser imitado, tendo provocado intensa reação em toda parte. Harry Stone, representante do poder político dos americanos, acabou tendo que vir ao Brasil, para ver pessoalmente o que estava acontecendo por aqui.

Quando, vítima de equívocos e maldades, o cinema brasileiro foi arrancado violentamente das salas pela violência articulada por Fernando Collor de Mello, lembro-me bem que os cineastas brasileiros se manifestaram tentando mostrar aos que então mandavam no país o que estava acontecendo. Lembro sobretudo do esforço que fazíamos para mostrar que aquilo correspondia à ocorrência de um momento que mais cedo ou mais tarde seria desmoralizado e teria que ser encerrado. É esse o momento que estamos vivendo hoje, e o governo Lula terá o reconhecimento da nação se compreender esse particular de nossa produção cultural.