Artigo

Aos cuidados de Dona Margareth

Cacá Diegues - Jornal O Globo - 08 de janeiro de 2023

Somos hoje uma cultura original porque ibérica, indígena e africana. Queremos saber para onde vamos



A cantora Margareth Menezes: ministra da Cultura do novo governo Lula Foto:Evaristo Sá/AFP

Um país só existe como país quando é capaz de produzir uma cultura própria, alguma coisa que o diferencie dos outros. Repito: uma cultura própria que dirá primeiro o que ele é. E depois o que ele quer ser.

Essa cultura não precisa ser original e única, mas tem que ser própria, uma produção de seu povo capaz de identificá-lo, de torná-lo reconhecível junto a todos os outros. A cultura é, assim, a alma de uma nação e de um povo, o modo através do qual ele se manifesta, para um pranto diante do desastre ou para o êxtase graças a um sucesso.

A fala é o principal instrumento dessa manifestação, é através dela que esse povo existe e revela sua existência. Ela é o modo prioritário de revelar uma cultura. Seu significado mais preciso que não necessita do embasamento de uma teoria para justificar o que é. Se a cultura de um povo é sua alma, a fala dele é o modo através do qual ele indica o que ela está sentindo e deseja.

Hoje, com a invenção e os avanços de outras formas de comunicação, a língua deixou de ser um elemento único e se tornou apenas sua principal manifestação. A música (o som organizado), o teatro (a dramaturgia), o audiovisual (a imagem em movimento) se tornaram formas sofisticadas de revelar cada cultura humana no lugar preciso que lhe é devido.

A língua portuguesa, nossa fala, está espalhada pelo mundo em diversas versões, difundida em todos os continentes do planeta, nem sempre de modo ao menos semelhante. Ela é a fonte de nossa fala, do modo que a usamos, um fenômeno cultural recente que não obedece a decisões arbitrárias e ainda não produziu regras indiscutíveis. Inculta e bela, uma de suas versões mais selvagens é a que podemos apelidar de “língua brasileira”.

A “língua brasileira” é o resultado do que ouvimos e aprendemos a falar ao longo de nossa curta história. Ela começa a se formar no dia em que colonizadores europeus se encontram com indígenas que viviam nesse território e depois com africanos para cá trazidos como escravos. Com esses seres humanos que fizeram parte de nossa vida (a vida é mais que a História!) formamos a tríplice origem do que somos. Com eles saberemos também o que pretendemos ser.

O encontro de europeus do mundo ibérico com indígenas do Novo Mundo e com africanos cheios de esperança deve ter produzido alguns mal-entendidos. Como a viúva de Bob Marley ensinou a Gilberto Gil, a palavra samba, por exemplo, usada pelos portugueses como referência a um ritmo de origem africana, às vezes grafada ou pronunciada com um “e” (formando semba), já estava há tempos implantada na Jamaica como um modo das tribos locais anunciarem suas festas musicais. As festas em que aqueles indígenas caribenhos anunciavam os grupos musicais que iriam se manifestar na ocasião. Nosso grande músico baiano já ouvira a mesma palavra, com o mesmo significado, na tradição dos cariri, indígenas que viviam no nordeste do Brasil, nas regiões baiana, sergipana e alagoana em torno do Rio São Francisco.

Por aí vão todas as palavras de todas as línguas do mundo. Não é raro que estudiosos encontrem, em civilizações longínquas, a origem de expressões muitas vezes bem próximas de suas falas. Como numa Torre de Babel histórica, um sânscrito ignorado, espalhado secretamente pelo planeta. Mas é preciso saber disso e reconhecê-las para lidar com as culturas às quais pertencem. Somos hoje uma cultura original porque ibérica, indígena e africana. Depois da consciência de onde viemos, queremos saber para onde vamos.

Ocupados com a nova língua dominante, todos esses povos citados foram naturalmente obrigados a compreendê-la para tentar transformá-la na língua que todos nós hoje falamos. Mas isso já é outra história, que podemos ver se dá para contar outro dia. Aqui ou alhures.