Artigo

Cena de 'Orfeu', de Cacá Diegues (1999) — Foto: DIVULGAÇÃO/ZECA GUIMARÃES

Antes que o mundo acabe pra valer

Por mais que a gente tente controlá-la, a vida é feita de acasos, eventos que não programamos

Como já dissemos aqui, a ideia de Modernismo no Brasil só começou a se consolidar no início dos anos 1920. Foi quando começamos a tentar responder às perguntas sempre sem respostas: quem somos e o que queremos ser. E as respostas só poderiam começar a serem encontradas através da ação popular, daquilo que a mantinha viva. De sua cultura.

Não se tratava mais de procurar entre nós as melhores pistas de valores consagrados lá fora, mas de criar nossos próprios valores necessariamente distintos dos de “lá fora”. Tratava-se de inventar uma nação que ainda não existia, a partir de costumes originais que sempre existiram, de uma linguagem inédita que nunca percebemos existir, de personagens e situações que só nós conhecíamos e que, portanto, só nós podíamos torná-las uma narrativa com algum sentido.

O cinema logo teve um papel nisso tudo, não podíamos inventar uma nação nova como aquela sem uma imagem original que a registrasse e a revelasse. Nossos primeiros criadores da experiência poética escrita nas areias de nossas praias cruzaram com esses cineastas inaugurais. Mas nenhum dos dois grupos de artistas se impressionou com o que o outro fazia.

Em 1898, Affonso Segreto, italiano radicado no Brasil, chegou de longa viagem a Paris e Nova York trazendo na bagagem “vistas movimentadas” dessas cidades e da entrada da Baía da Guanabara. A data, consagrada em jornais e manifestações de época locais, ficou marcada como a da invenção do cinema no país, aplaudida por gente como o presidente Prudente de Moraes. A fundação do cinema brasileiro se dava, portanto, com um filme que nunca existiu, seu responsável era um homem que nasceu e viveu distante das câmeras, que não tinha nada a ver com um Louis Lumière.

O Brasil dava os primeiros passos para resolver a questão das incertezas sobre nosso futuro, garantindo a exibição dos filmes nacionais, protegendo-os contra o massacre do mercado. Essa foi iniciativa nossa. (Embora ainda falte muita coisa que já está sendo concluída em outros países com menos pressa econômica e cultural e mais baixa qualidade de resultados.) Esses talvez sejam nossos mais poderosos animadores.

No início dos anos 1970, quando conheci Jeanne Moreau, meu compromisso de encontro era com realizador internacional de quem era fanático admirador. Sabendo disso, amigo comum me havia convidado para assistir à primeira cópia do filme, pois o Mestre de quem fora assistente estaria certamente presente para ver o filme de estreia do novo assistente. Renoir, o Mestre em questão, me ouviu em silêncio compenetrado e ao compreender que havia encerrado a narração do que se passava, me sugeriu voltar logo para o Brasil. Às pressas, para ainda pegar as transformações que estavam sendo feitas naquele exato momento.

Essas transformações estavam de fato em curso tocadas pelo mito de nossa formação étnica, única indo-luso-africana em todo o planeta. No mito do país imenso e no milagre de ser um só desse tamanho todo, com uma só língua e costumes semelhantes. No mito da cordialidade com que acostumamos a nos definir. No claro humanismo de nossa melhor produção cultural e em nossa permanente esperança de sermos o futuro da Humanidade.

Do ponto de vista da democracia, só existia essa governabilidade possível, qualquer outra seria sempre uma espécie de chantagem exercida em nome de forças ocultas, sem identidade conhecida. Enquanto não encontrarem coisa melhor, é preciso se conformar com a beleza do voto garantindo o poder para o que a maioria deseja e o direito de manifestação livre da minoria que, daqui a quatro ou cinco anos, terá outra oportunidade de se tornar maioria.

Tentamos encontrar em mais gente uma resposta para o horror de nossa frustração, o fracasso objetivo do pensamento social vencido pela realidade, com o exemplo maior da União Soviética, então berço de quase tudo. Não podíamos imaginar que não houvesse alternativa ao regime de exploração do homem pelo homem.

Os movimentos identitários partiam da defesa da diversidade, da defesa do outro. Hoje esses movimentos se transformaram em autopiedade social, pouco se importando com os outros, nem deixam que os outros se metam nos assuntos que não lhes “pertencem”. John Stuart Mill, iluminista inglês do século XIX, chamava a isso de “tirania da maioria”.

Em 1936, na Espanha, Millán-Astray, fundador da franquista Legião Espanhola, costumava interromper as manifestações de professores na Universidade de Madrid com gritos: “Abaixo a inteligência, viva la muerte!” Quando tentou dizer o mesmo para o grande poeta e filósofo Miguel de Unamuno, este lhe respondeu com afirmação que terminava com o que se tornou universal e eterno: “Somos mais pais de nosso futuro do que filhos de nosso passado.”

Por mais que a gente tente controlá-la, a vida é feita de acasos, eventos que não programamos e que podem chegar até nós por uma sucessão de acontecimentos que se personalizam. Ou por disposições políticas e históricas do lugar e do tempo em que vivemos. Apenas desse tempo. Mas em política e História nem sempre podemos dar um jeito no acaso para que ele possa se acertar com nossos planos pessoais.

Não há tristeza capaz de suportar tanta alegria. Ou, dizendo como nosso cronista Bruno Astuto, “a arte é a única coisa que nos resta quando tudo o mais desaparece; ainda que atacada, pelo menos ela restou”.