Artigo
A guerra da imprensa
Cacá Diegues - Jornal O Globo - 18 março 2022
Segundo Hamilton, um dos pais do conjunto de princípios e regras que geraram
os Estados Unidos da América como eles são hoje, “a imprensa americana nasceu
antes da democracia americana”. O país não passava de um arranjo entre as 13
colônias diferenciadas e independentes, com colonizações raciais e culturalmente
distintas, quando Alexander Hamilton e James Madison as convenceram a formar
uma federação, sob o controle de uma Constituição Democrática única.
Curiosamente, a base dessa Constituição Democrática acabou sendo a carta da
Suiça que vigora até hoje naquele país.
Foi a imprensa norte-americana, aquela a que Hamilton se refere, que garantiu as
liberdades e as responsabilidades que o texto escrito passou a ter na tradição
democrática dos USA. Podemos dizer que foi essa tradição, formada desde o
século XVIII, que não só garantiu o mito social das liberdades de opinião e de
expressão, como também deu origem à ideia de um regime onde todos podem
meter sua colher. Contanto que nada disso se manifeste em oposição ao princípio
original de liberdade e responsabilidade.
Domingo passado, por exemplo, defendi a dupla Zelensky e sua esposa cantando
“My endless love”. Qual o quê! Não era nenhum dos dois que, por sorte, haviam
caído no meu WhatsApp. Ainda bem que Fanny Maria percebeu a gafe, nos
alertou e a corrigiu por escrito. Como sou meio teimoso, ainda tenho esperança
de que, um dia, possa contar essa história de um jeito que seja o meu jeito. Seria
o fino porque, entre outras coisas, eu estaria consolidando o sonho como coisa
que pode existir e se tornar real.
O húngaro Joseph Pulitzer é outro herói daquela saga cultural americana. Uma
saga cultural, política e de negócios. Ele teria chegado a nado no Novo Mundo,
pulando de seu navio para o mar da Costa Leste. Pulitzer popularizou em seus
jornais a expressão power to the people, até hoje vigente e vigorosa, realizando
uma virada antitruste na atividade. Ele enfrentou o establishment e a imprensa
conservadora de William Randolph Hearst, que dominava o país articulada com os
políticos no poder. Em “Cidadão Kane”, o cineasta Orson Welles o denunciou
publicamente e Hearst, através de seus jornais, perseguiu-o pelo resto da vida.
Tendo morrido em 1911, Pulitzer deixou, atrás dele mesmo, uma tradição de luta
popular que deve ter tido, como seu maior sucessor, o inesquecível Steve Jobs.
Foi ele, Pulitzer, que inventou o jornal com títulos imensos, como Jobs gostava e
sugeria algo equivalente em seu setor de trabalho. E é também o primeiro grande
jornalista a por sua equipe na rua fazendo reportagens sobre a vida dos
imigrantes, a violência policial contra eles e a corrupção que, entre os dois,
explorava sempre os mais frágeis.
Foi Pulitzer quem, afinal de contas, criou o modelo do jornalismo moderno e
democrático. Antes de morrer, ainda muito jovem, ele vaticinou: “Nossa república
e sua imprensa vão florescer ou decair juntas (…). Uma imprensa cínica,
demagógica e mercenária produziria, com o tempo, um povo igual a ela. O poder
de determinar o futuro de nossa república estará nas mãos dos jornalistas das
gerações futuras”. A cobertura da invasão da Ucrânia pela Rússia tem sido uma
oportunidade de mostrar que ele estava certo.